"E
Deus viu que era bom... e Deus viu que era muito bom". Assim, em forma
poética, descreveu o Autor Sagrado a criação do mundo nos capítulos I e II do
livro do Gênesis. O mal entra como fruto da escolha livre dos anjos e dos
homens (Gênesis, cap. III). A partir daí a criação herda uma desordem que
chegará a ser motivo para alguns pensadores cristãos desenvolverem um
pensamento de dualidade entre o céu (que é sempre bom) e o mundo, que é mal.
A
consequência verifica-se numa ruptura entre espiritualidade e atividades
sociais, e o pior numa separação entre o "sacro" e o
"mundano". Esta ideia, preponderantemente
presente no medievo, continua ainda muito forte quando propomos uma separação
radical entre "as coisas de Deus" e "as coisas do mundo". O
desastre é bem visível: de um lado ficam os bons, os fiéis, os farisaicamente
corretos e, do outro, os pecadores, infiéis e mundanos. Gera-se assim uma
escandalosa divisão e quase oposição entre a espiritualidade e o mundo atual,
que depois vai tornando-se nuns e noutros em dicotomia entre fé e vida.
É bem
verdade que o homem pós-moderno continua a ter sede de algo que o preencha, que
seja mais que o virtual, que dê sentido a sua existência. A busca por este
sentido foi uma das causas primeiras para que a questão religiosa estivesse
presente em todos os povos da face da terra. Mas, hoje, as possibilidades de
respostas são quase infinitas, pois seitas e religiões chuviscam ou borbulham
por todo o globo terrestre e compõem igualmente as inúmeras opções deste mundão
chamado internet. Diante disto, o cristianismo apresenta-se como a identidade religiosa
de muitos povos e mantem sua vocação universal, sendo, contudo, desafiado cada
dia a responder as questões de sempre, porém reformuladas a partir das ideias e
comportamentos das pessoas deste nosso tempo. Como nós cristãos haveremos de
nos ocupar de tamanha responsabilidade? Respostas imediatas são quase sempre
falíveis, mas sem dúvida o modelo mais adequado para responder de modo não só
convincente, mas também coerente aos coetâneos é aquele inspirado na própria
realidade da Encarnação do Filho de Deus.
"E a
Palavra se fez Homem e abitou entre nós" (Jo 1, 14). Como poderemos falar
aos homens se não sendo um com eles e compartilhando de suas angustias e
esperanças mais profundas? A resposta da fé torna-se espiritualidade quando é
capaz de envolver-se com o mundo para o transformar. É belo encontrar na Oração
Eucarística VI D, uma breve síntese do deveria ser a espiritualidade do cristão
no mundo atual: "Pai misericordioso e Deus fiel, Vós nos destes vosso
Filho Jesus Cristo, nosso Senhor e Redentor. Ele sempre se mostrou cheio de
misericórdia pelos pequenos e pobres, pelos doentes e pecadores, colocando-se
ao lado dos perseguidos e marginalizados. Com a vida e a palavra anunciou ao
mundo que sois Pai e cuidais de todos como filhos e filhas". É este encontro
com o outro, fazendo-se próximo para ouvi-lo e compartilhar de suas dores que
abre caminhos para o encontro com Cristo, raiz e plenitude de nossa
espiritualidade. Não pensemos que é o aumento de títulos devocionais, de
"montes" milagrosos ou de ritualística desencarnada que sustentara a
experiência de Deus dos homens e mulheres de nosso mundo. Ligar a televisão
hoje é deparar-se com este desencontro (oposto do nome religião) entre sagrado
e profano. De um lado, canais que ridicularizam e menosprezam a religião como
algo ultrapassado e digno do escárnio; de outro, um frenesim de programas em
torno de curas, milagres, promessas de enriquecimento, profecias (sem
profetismo). Como ainda estamos distantes do modelo de Jesus. Miserere nobis!
Pe. José Lenilson de Morais
(Vigário paroquial de São José de Mipibu)
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